terça-feira, 14 de agosto de 2012

Luis Carlos de Moraes Junior


Quem é Tolteca

Como disse Nietzsche, é preciso ir além do homem; é urgente e necessário reinventar as ciências humanas, como nos mostram Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil Platôs. Não vou explorar aqui esta relação, que penso ser muito promissora: o aprendizado de Castaneda, segundo meu pensamento, se liga àquilo que Deleuze chama de virtual, diferentemente do idealismo platônico, do espiritualismo religioso ou da magia do senso comum.
Há dois reais: o real atual e o real virtual.
Eu penso que Deleuze faz o trabalho mais importante no sentido de revelar ou resgatar a natureza mais íntima e genuína da filosofia: o pensamento do tempo, do tempo puro, da ontologia do tempo, a ontologia do pensamento.
Platão sabia disso, e, por algum motivo, o traiu.
Os estoicos bem o sabem e não nos enrolam: os corpos existem no presente, os acontecimentos subsistem no passado e no futuro.
Carlos conta que Don Juan lhe dizia que os feiticeiros não têm passado nem futuro, os feiticeiros vivem sempre no presente.
Aliás, todos nós.
Isso é o tempo puro. A questão germinal da filosofia. Nietzsche sabia, e falou com todas as letras. Os loucos são os outros.
Quando os Stevens nos ensinam a “viagem xamãnica” dos índios da norteamérica , do que eles nos falam, que experiência é esta?
Ensonhar, o corpo sonhador (CsO, de Deleuze e Guattari), as fibras de consciência que nos constituem, e que saem do ventre para atuar, tocar nas coisas, a vontade que dispara do meio do corpo como uma flecha, o duplo, o nagual, umas estranhas realidades.
O virtual.
Vou fazer uns parêntesis aqui para usar uma definição de guerreiro que não tem nada a ver com a tradição nagualista, e que, no entanto, tem tudo a ver, pasmem senhores, a proposta de viver como um guerreiro está nos quatro cantos do mundo:
/.../ O caminho que intenciono descrever neste livro chama-se o caminho Shambhala do guerreiro. Os ensinamentos Shambhala descrevem a vida humana comum, vivida plena e completamente, como um caminho da arte do guerreiro. Ser um guerreiro, homem ou mulher, significa ousar viver genuinamente, mesmo em face de obstáculos como o medo, a dúvida, a depressão e a agressão externa. Ser um guerreiro não mantém nenhuma relação com travar uma guerra. Ser um guerreiro significa ter a coragem de saber completa e totalmente quem você é. Quer se julgue bom ou mau, quer seja feliz ou deprimido, jovem ou velho, neurótico ou equilibrado, como um autêntico guerreiro você reconhece a inerente bondade básica, mais profunda e duradoura do que todos esses efêmeros altos e baixos. Quando se é genuinamente autêntico, fica-se aberto a essa bondade fundamental existente em si e nos outros, mesmo quando ela parece obscura ou completamente enterrada. Os guerreiros nunca desistem de ninguém, inclusive de si mesmos.
Por outro lado, tais pessoas que julgam Carlos e outros naguais sem os conhecer, não sabem o que eles constroem e fazem com seu conhecimento e seu poder, para o bem da sociedade e o aprimoramento do homem, ou, nas palavras de Don Juan, como eles sempre estão a depositor quantias “na conta do ser humano”, que tem saldo muito baixo, em seu afeto sem condições, o qual, na verdade, é o amor pelo ser no qual vivemos, a Terra. (E a ciência ocidental começa a perceber isto, como, por exemplo, na genial Hipótese Gaia de James Lovelock .)
A última vez que o vi, foi em 12 de fevereio de 1996, no evento “Os Novos Caminhos da Tensegridade” (“Los Nuevos Senderos de la Tensegridad”), organizado no Centro Asturiano por Guillermo Díaz /.../.
Para mim, este evento foi muito importante, porque, como encarregada da difusão, me coube organizar uma conferência para a imprensa - a única que (Carlos) deu em toda a sua carreira -. Um detalhe comovente foi que o dinheiro arrecadado, acima de 150 mil pesos, foi doado a uma instituição de assitência à infância mexicana; me tocou estar presente no dia da entrega do dinheiro.
E os toltecas agem assim para pagarem suas dívidas. Eles sabem que não há ação sem reação, e sempre devolvem o que lhes é doado, seja bom ou ruim.
No caso, cada um de nós vem se beneficiando desde que foi concebido, com o dom da Águia, o alimento da terra, o carinho e o ensinamento de nossos pais e da sociedade, o conhecimento que nos legam os precursores e as manifestações do espírito. Um guerreiro sempre salda suas dívidas.
Voltando às violentas críticas contra Carlos, não vou analisar argumento por argumento, das três obras mais fundamentadas, que se opõem à de Carlos Castaneda. Colocando juntas várias questões, devemos levar em consideração, para não cair na armadilha antievolutiva ou antievolucionária de tais críticas, o seguinte:
1 - Don Juan não representa uma cultura, nem yaqui nem alguma outra. É bobagem argumentar que quem usa o Mescalito, peyotl, o peiote, são os huicholes, e não os yaquis (Margaret nos conta que Carlos viajou com Don Juan para a terra dos huicholes, para participar de uma grande sessão de peyotl, o que está relatada em Uma Estranha Realidade, e na qual ele explica que ficou tentando encontrar um acordo tácito e uma forma não verbal de comunicação para definir o teor das revelações, coisa que, claro, não encontrou ). Carlos deixa bem claro que a toltequidade (nauallotl), o conhecimento tolteca, sua disciplina e sua luta, não se restringem a uma certa cultura, a uma sintaxe específica. Muito pelo contrário, o que se faz aqui é sair dos valores e limitações de qualquer visão de mundo, é explorar o ir além das possibilidades humanas. O lema dos toltecas é plus ultra. O lema dos reacionários, que eles nunca aceitam, é o nec plus ultra, o slogan medieval que dizia: você não pode ir além. Os europeus da Idade Média diziam isso sobre o mar que conheciam, os antievolucinários atuais dizem isso do “oceano da consciência”, outra expressão dos livros de Carlos. E isso também incomoda muita gente, média. Tenhamos em mente que há na linha de Don Juan guerreiros de várias nações indígenas, mexicanos, descendentes de europeus, americanos, e até pelo menos um chinês, o Nagual Lujan (o antigo, da linha de Don Juan Matus, não o autor atual de The Art of Stalking Parallel Perception, the Living Tapestry of Lujan Matus, do qual nada se sabe, mas que pelo uso que faz do inglês mostra ser estadunidense de nascimento, muito provavelmente, e se declara aprendiz energético e de ensonho do antigo nagual, de quem herdou o nome). Por outro lado, Carlos foi o mais fiel possível no seu intuito de relatar antropologicamente a cultura que encontrou, mas o que ele relata é a cultura profunda, aquela que sobreviveu em tantos povos autóctones como o grande plano tolteca que havia antes da invasão dos europeus e não deixou de haver, por trás das várias diferenças das designações dos povos do México (e da América).
2 - A “viagem a Ixtlan” de Carlos é iniciática, e todos os acontecimentos e personagens têm significados pragmáticos, para gerar no leitor um sonho de poder. Ele mesmo reforça, os seus são “Contos de Poder”, “Tales of Power”. Não faz sentido nenhum fazer verificações práticas dentro de esquemas preestabelecidos, do tipo tal fato cultural pertence a tal tribo, tal palavra é ou não falada por tal grupo, essa planta ou esse animal se encontram ou não na região citada. Seu relato é mágico, como um sonho, e tudo pode acontecer, e acontece. Sorriem porque fala de plantas que não há no deserto de Sonora, ou porque caminha por horas através dele ao lado de Don Juan, o que desidrataria qualquer um. Esquecem que em O Poder do Silêncio Carlos é perseguido por um jaguar (que ele mesmo relata que não existe na região, fato sobre o qual Don Juan faz ironia), e se torna um gigante para poder escapar. Ou que ele se desloca quilômetros em segundos, viaja na água, no fogo, através de paredes, no tempo, fica sem massa e penetra em outros corpos, vira um corvo, e se transforma em uma minhoca gigante com La Catalina. O texto é mágico, é uma máquina de experimentação, e não um amestrado e dócil rol de fatos comprovados ou prováveis. O que não faz dele literatura (ele costuma ser relacionado com o realismo fantástico latinoamericano, que é genial, mas é outra coisa; esse realismo fantástico tão importante como manifestação original da América Latina, e tão ligado às literaturas dos povos indígenas ). Nem quer mais ser uma “ciência social”, nem nenhuma ciência ocidental, que são, essas sim, ou estas também, malgrado sua pretensão, e sua presunção, mitos. A toltecáyotl se erige em Gaia Ciência, Ciência Real, real aqui entendido no sentido de realidade e realeza.
3 - Do mesmo modo com todas as verificações “sherlockianas”, que vão buscar documentos para comprovar que ele não estava onde dizia estar, ou que o tempo não era suficiente para o que ele diz que aconteceu, etc. Ora, a manipulação do ponto de encaixe e o acesso a outras emanações do casulo luminoso (e até fora dele) possibilitam feitos incríveis, como alterar o humor, a aparência, as feições, o sexo, a altura, a idade, e muitas outras características do feiticeiro, à vontade. E lhe permite também condensar o tempo em várias modulações, pois todos nós o fazemos, o tempo nunca transcorre “igual”. O feiticeiro, todavia, condensa muito mais, sendo capaz de viajar quilômetros em segundos, fazer uma cena se repetir na realidade, ou estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo. Podemos aplicar a tudo, inclusive a Castaneda, o crivo de Nietzsche: não importa se algo é verdadeiro ou falso, mas que modo de vida aquilo produz, se é forte (potente) ou tolo.
4 - Apareceram ex-discípulos decepcionados. A internet ajudou muito na eclosão deste fenômeno. Nem todos os sites são contra, é claro, a maioria é laudatória, e/ou traz recursos e informações importantes: downloads dos livros (principalmente em inglês e espanhol), as únicas notas de campo que chegaram até nós (Anexo A), fotos, entrevistas, resenhas de livros sobre ele etc. O “avô de todos os sites” deste tipo foi o http://nagual.net/. Importantes também, entre muitos outros, são o http://www.oldnagualnet.com/, http://toltec-nagual.com/ e http://gruporemolinoalba.blogspot.com.br/. A página Interviews do site Nagualism.com http://www.nagualism.com/interviews-articles.html oferece vinte e três entrevistas com Carlos, as bruxas, os instrutores de tensegridade e os rastreadores de energia, em língua inglesa, traz notas de seminários, in http://www.nagualism.com/warriors-notes.html, e links, in http://www.nagualism.com/nagualism-links.html. Víctor Sánchez, e sua organização AVP (La Arte de Vivir a Propósito), que promove seminários, nos oferece o sítio http://www.toltecas.com/. Há também o site Sustained Action, http://www.sustainedaction.org/, criado por Corey Donovan, que foi seguidor de Carlos e se decepcionou, e que traz a cronologia de nosso autor e das suas companheiras feiticeiras (essas cronologias, tão violentas para com a proposta do nagualismo, são uma espécie de filé mignon do site, e foram muito reproduzidas e muito facilmente aceitas por todos, sem questionamentos), reproduções de documentos, e bastante argumentação sobre a suposta não-cientificidade de sua obra, falsidade ideológica, relações com outras fontes que poderiam ter sido plagiadas, e explanações sobre “culto da personalidade” em seitas, coisa de que também o acusam.
Ora, Carlos era um nagual de três pontas, ele tinha por natureza não reproduzir a sua linha, não ensinar aprendizes pessoais, mas sim fazer eclodir o conhecimento em incontáveis linhas novas, através da sua divulgação, o que, com certeza, ele fez. É o próprio fato de ter sido tão honesto, sincero e generoso que o leva a ser tão criticado. Ele revelou muita coisa, deu os instrumentos evolutivos para todos que quiserem aprender. Ainda, sua técnica de ensinamento radial o levava a atacar os egos e auto-imagens de todos, a começar por si mesmo. Muita gente não suporta isso, ou o fato de que ele não era “bonzinho”, humanista, mas sim evolutivo.
Mudando de tema, o que você nos pode dizer sobre os detratores da mensagem de Carlos? Em geral, são pessoas que se sentem defraudadas. É como se o Nagual lhes tivesse prometido algo e não o houvesse cumprido. São pessoas despeitadas. Aquilo que têm é pura importância pessoal.
5 - Antropológica e politicamente, Carlos Castaneda inaugura nos meios acadêmicos e editoriais ocidentais a ideia e a proposta real e séria de que os índios da América pré-colombiana não eram “primitivos”, “selvagens” e “neolíticos”, mas tinham sim um conhecimento teórico e prático que, no mínimo, se ombreia em complexidade, racionalidade e funcionalidade com a ciência e a filosofia de origem europeia. Ele traz a presença de um índio forte, sábio, poderoso e rico. Não é mais o interesse “filatélico” por palavras e artefatos, como curiosidades bobas. O que ele nos mostra é uma máquina incrivelmente potente de transmutação e evolução, que existe nos dias de hoje, está presente, e é a verdadeira cara da cultura panamericana dos povos ameríndios não aculturados e que têm muito a nos ensinar: a toltequidade.
Um que entendeu tão melhor a sua proposta, e logo, foi o poeta Octavio Paz. Estranhamente, o governo mexicano promoveu um delay entre a publicação ianque dos Teachings of Don Juan e a versão em espanhol, Las Enseñazas. Dizia-se que temiam que os jovens americanos entrassem pelo México, e que os próprios mexicanos vasculhassem tudo, atrás de Don Juan. Estranhos motivos... pra esse atraso!
O livro foi publicado em 1968 nos EUA, e em 1974, no México. Esta edição, do Fondo de Cultura Económica, ganhou um brilhante, entusiasmado e entusiasmante prólogo de Octavio Paz, intitulado “La Mirada Anterior”, que é todo muito importante Quero esclarecer também que o título deste trabalho sendo Carlos Castaneda e a Fresta entre os Mundos [Vislumbres da Filosofia Ānahuacah no Século XXI], pode-se pensar que tento fazer o levantamento do que é a filosofia vinda dos povos pré-colombianos na América até os dias de hoje, um pouco como Pierre Clastres encontra os vestígios de uma filosofia tupi em A Sociedade Contra o Estado .
Bem, sim e não. Eu faço aqui a pesquisa e a análise crítica de muita coisa que se está conhecendo agora sobre o pensamento Tolteca, a Toltecáyotl ou Nauallotl, isso é verdade. E considero sim que este pensamento está vivo e atuando em nosso mundo hoje. Mas não posso dizer que a Nauallotl seja uma “Filosofia”, sem demérito de nenhuma das duas. A Toltequidade (Nauallotl) é uma visão de mundo, tem uma ontologia, uma ética, uma terapia e práticas de desenvolvimento. Mas não é uma filosofia, pois esta traz as características chamadas de “ocidentais” de ter nascido na Grécia, na pólis, associada à política e à democracia, à laicização da palavra e à comunização do saber , e, principalmente, aos princípios da razão, que vou cotejar com a Nauallotl no próximo capítulo.
O que podemos pensar é que esses grandes rios se encontram, de alguma forma, nos tempos atuais. Que há algo muito forte e afirmativo acontecendo, quando os preconceitos e barreiras vão caindo, e temos a promessa de uma Bacia Amazônica, ou até mesmo de todo um Oceano Atlântico, e da pororoca desse oceano para dentro dos rios desses saberes e visões de mundo.


Artigo gentimente cedido por Luis Carlos de Morais Junior, parte integrante do livro Carlos Castaneda e a Fresta Entre os Mundos. Finalmente um trabalho de pesquisa sério e bem fundamentadado que lança luz sobre as críticas lançadas à obra de Carlos Castaneda.
Recomendamos a leitura!
 
O livro pode ser adquirido através deste site

 http://www.leonardodavinci.com.br/descricao.asp?cod_livro=JUN021

 Temos a versão em PDF também mas não sabemos anexar ao blog.. Como já aprendemos a ativar links, você pode solicitar clicando aqui: remolinoalba@gmail.com
ou aqui:
editorialba@yahoo.com

Boa leitura,
Abraços Remolinos!

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